domingo, 16 de dezembro de 2012

- E a propósito…não seremos nós porventura, mais que os caracóis? Apenas, hoje, não se preocupe…





Conheço uma velha fábula oriental que conta a chegada de – imaginem – um caracol ao céu.

O pequeno molusco arrastara-se durante quilómetros e quilómetros desde a terra até ao céu, deixando no seu caminho um sulco de baba e até pedaços da sua alma pelo esforço despendido.

Ao chegar mesmo à beira do pórtico do céu, São Pedro olhou-o com imensa compaixão. Acariciou-o com a ponta do bastão e perguntou-lhe:

“- Que vens tu procurar no céu, pequeno caracol?”

O caracol, levantando a cabeça com um orgulho que jamais se suspeitara nele, respondeu:

“- Venho à procura da imortalidade.”

Agora São Pedro começou a rir francamente, embora com ternura. E perguntou:
“- A imortalidade? E que farás tu com a imortalidade?”

“- Não te rias – disse o agora irado caracol – Por ventura não sou eu também uma criatura de Deus, como os arcanjos? Sim, exatamente isso, sou o arcanjo caracol!”

Agora o riso de São Pedro tornou-se um pouco mal intencionado e irónico:

És tu um arcanjo? Os arcanjos têm asas de ouro, escudo de prata, espada flamejante, sandálias vermelhas. Onde estão as tuas asas, o teu escudo, a tua espada e as tuas sandálias?”

O caracol voltou a levantar com orgulho a cabeça e respondeu:

“- Estão dentro da minha concha. Dormem. Esperam.”

“- E que esperam pode saber-se?” – Argumentou São Pedro.

“- Esperam o grande momento.” Respondeu o molusco.

O porteiro do céu, pensando que o nosso caracol se havia tornado louco de repente, insistiu:
– Que grande momento?

“- Este!” – Respondeu o caracol e dizendo isto deu um grande salto e cruzou o dintel da porta do paraíso, do qual nunca mais puderam deitá-lo fora.

E a propósito desta fábula, li um destes dias, o comentário de um dos mais deliciosos escritores de língua espanhola, infelizmente tão pouco conhecido entre nós: José Luís Martín Descalzo.

E, para mim, os seus comentários fizeram todo o sentido…

Comentários que, aqui, gostaria de partilhar convosco:

Passa o homem os seus dias arrastando-se pelos caminhos do mundo e deixa mais alguma coisa do que baba? Se medirmos as horas dos homens há nelas mais mediocridade que heroísmo.

Às vezes dir-se-ia que as nossas mãos se construíram para se equivocar, que delas só sai dor para os outros e cansaço para nós.

Débeis como caracóis, quem quer poderia pisar-nos e rebentar a nossa existência como a débil concha dos gastrópodes.

E quando o medo nos domina?!

Quantas vezes nos acantonaríamos dentro de nós mesmos se contássemos com essa concha protetora onde nos refugiarmos!

E, todavia, dentro estão as nossas armas:
- as asas de ouro da inteligência;
- o escudo de prata da vontade;
- a lança viva da palavra;
- as sandálias vermelhas da coragem.

Estão lá dentro, adormecidas, quase sem as usar.

Quão poucas vezes desembainham os homens as suas armas! São enormes e magníficas, resistentes à dor, literalmente invencíveis. Mas anestesiadas, atrofiadas de gordura, molhadas como palha que fumega e não arde.

Dormem, mas também esperam.

No mais amargurado dos seres humanos flameja uma bandeira de esperança.

Não sabe que é que espera, mas espera. Inclusive quando tudo parece estar perdido, a menina esperança grita que talvez amanhã tudo mude.

Aos Homens, à humanidade falta, também, como ao pequeno caracol, dar o grande salto. “

Afinal, não seremos nós porventura, mais que os caracóis?

Apenas, hoje, não se preocupe…

Sintam-se abraçados.

Mafra, 16 de dezembro de 2012.

MJV

Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido pelo Lince.         

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