Conheço uma velha fábula oriental que conta a chegada de –
imaginem – um caracol ao céu.
O pequeno molusco arrastara-se
durante quilómetros e quilómetros desde a terra até ao céu, deixando no seu
caminho um sulco de baba e até pedaços da sua alma pelo esforço despendido.
Ao chegar mesmo à beira do pórtico do céu, São
Pedro olhou-o com imensa compaixão. Acariciou-o com a ponta do bastão e
perguntou-lhe:
“- Que
vens tu procurar no céu, pequeno caracol?”
O caracol, levantando a cabeça com um orgulho
que jamais se suspeitara nele, respondeu:
“- Venho
à procura da imortalidade.”
Agora São Pedro começou a rir francamente,
embora com ternura. E perguntou:
“- A imortalidade?
E que farás tu com a imortalidade?”
“- Não te
rias – disse o agora irado caracol – Por
ventura não sou eu também uma criatura de Deus, como os arcanjos? Sim,
exatamente isso, sou o arcanjo caracol!”
Agora o riso de São Pedro tornou-se um pouco
mal intencionado e irónico:
“És tu um
arcanjo? Os arcanjos têm asas de ouro, escudo de prata, espada flamejante,
sandálias vermelhas. Onde estão as tuas asas, o teu escudo, a tua espada e as
tuas sandálias?”
O caracol voltou a levantar com orgulho a cabeça
e respondeu:
“- Estão
dentro da minha concha. Dormem. Esperam.”
“- E que
esperam pode saber-se?” – Argumentou São Pedro.
“- Esperam
o grande momento.” Respondeu o molusco.
O porteiro do céu, pensando que o nosso caracol
se havia tornado louco de repente, insistiu:
” – Que
grande momento?”
“- Este!” – Respondeu o caracol e dizendo isto deu um
grande salto e cruzou o dintel da porta do paraíso, do qual nunca mais puderam
deitá-lo fora.
E a propósito desta fábula, li um destes dias, o comentário de
um dos mais deliciosos escritores de língua espanhola, infelizmente tão pouco
conhecido entre nós: José Luís Martín Descalzo.
E, para mim, os seus comentários fizeram todo o sentido…
Comentários que, aqui, gostaria de partilhar convosco:
“Passa o homem os seus
dias arrastando-se pelos caminhos do mundo e deixa mais alguma coisa do que
baba? Se medirmos as horas dos homens há nelas mais mediocridade que heroísmo.
Às vezes dir-se-ia que as nossas mãos se construíram para se
equivocar, que delas só sai dor para os outros e cansaço para nós.
Débeis como caracóis, quem quer poderia pisar-nos e rebentar a
nossa existência como a débil concha dos gastrópodes.
E quando o medo nos domina?!
Quantas vezes nos acantonaríamos dentro de nós mesmos se
contássemos com essa concha protetora onde nos refugiarmos!
E, todavia, dentro estão as nossas armas:
- as asas de ouro da inteligência;
- o escudo de prata da vontade;
- a lança viva da palavra;
- as sandálias vermelhas da coragem.
Estão lá dentro, adormecidas, quase sem as usar.
Quão poucas vezes desembainham os homens as suas armas! São
enormes e magníficas, resistentes à dor, literalmente invencíveis. Mas
anestesiadas, atrofiadas de gordura, molhadas como palha que fumega e não arde.
Dormem, mas também esperam.
No mais amargurado dos seres humanos flameja uma bandeira de
esperança.
Não sabe que é que espera, mas espera. Inclusive quando tudo
parece estar perdido, a menina esperança grita que talvez amanhã tudo mude.
Aos Homens, à humanidade falta, também, como ao pequeno caracol,
dar o grande salto. “
Afinal, não seremos nós porventura, mais que os caracóis?
Apenas, hoje, não se preocupe…
Sintam-se abraçados.
Mafra, 16 de dezembro de 2012.
MJV
Texto escrito conforme o Acordo Ortográfico - convertido
pelo Lince.